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A década de ouro da CAOA vai continuar?


São Paulo – Até o dia em que encontrou um adversário que não podia vencer, o empresário paraibano Kildare Cavalcanti vendia tranquilamente veículos asiáticos em João Pessoa. Em 2007, ele abriu uma revenda da Hyundai, então a única na capital da Paraíba. Foi um sucesso. A marca coreana começava a cair nas graças do consumidor brasileiro, e os carros que chegavam eram logo vendidos.

Mas essa boa fase duraria apenas três anos. Cavalcanti entrou em rota de colisão com o tipo de inimigo que ninguém quer ter — o empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade. Caoa, como é mais conhecido, fabrica, importa e revende carros da Hyundai no Brasil. Em 2010, ano em que começou a produzir no país a caminhonete Tucson, Caoa concluiu que a Hyundai estava vendendo pouco em João Pessoa.

Poderia ser uma boa notícia para Cavalcanti se Caoa tivesse decidido ajudá-lo a vender mais — oferecendo descontos ou treinando funcionários, como tipicamente fazem as montadoras com suas revendas. Mas Caoa não estava querendo ajudar. Abriu ele mesmo lojas em João Pessoa, fez promoções agressivas e, segundo Cavalcanti, começou a cobrar mais por carros e peças.

Cavalcanti, que não deu entrevista, fechou as portas. Hoje, briga na Justiça para ser ressarcido. Acusa Caoa de ter rasgado o contrato de fornecimento. Pode até ser indenizado, mas importa pouco. Hoje, João Pessoa é mais um território do vasto império de Carlos Alberto de Oliveira Andrade.

O ataque a um revendedor da Paraí­ba é um movimento típico de Caoa (que não quis comentar a acusação de Cavalcanti por se tratar de processo em segredo de Justiça). Foi usando uma agressividade incomum que esse médico paraibano de 74 anos se tornou um dos empresários mais poderosos da indústria automotiva mundial.

“Se eu falar que faturei 100 bilhões de ­reais nos últimos dez anos, está bem próximo da realidade”, disse Caoa a ­EXAME. Seu lucro nesse período é estimado entre 5 bilhões e 10 bilhões de reais. Ele é dono de 132 concessionárias da Hyundai, da americana Ford e da japonesa Subaru e de uma fábrica que produz para a Hyundai em Anápolis, no interior de Goiás.

Como é o único dono da empresa, essa estrutura faz com que ganhe dinheiro como ninguém. Ele não revela quanto recebeu em dividendos no período (a Caoa não publica balanços). Mas algumas comparações ajudam a entender seu tamanho na indústria.

A americana Penske fatura 14,7 bilhões de dólares por ano, mas seu controlador, Roger Penske, recebeu “apenas” o equivalente a 1 bilhão de reais em dividendos na última década — ele tem, afinal, de repartir seus lucros com milhares de acionistas.

No mesmo período, os 80 herdeiros da Ford receberam, em média, 62 milhões de reais cada um em dividendos. No Brasil, os maiores e mais tradicionais rivais de Caoa têm, no máximo, metade de seu faturamento. Comem poeira, em suma.

Ser o maior vendedor de carros do Brasil tinha tudo para ser má notícia hoje em dia. O mercado brasileiro está metido numa séria crise. A venda de carros no país caiu 9% em relação a 2013. Os pátios das montadoras estão abarrotados. Há milhares de operários em férias coletivas. Mas Caoa não tem do que reclamar. Ele está, afinal, colado em uma marca que parece pertencer a um outro Brasil.

Só nos últimos 12 meses a Hyundai cresceu cerca de 10%. De todas as 50 marcas que disputam o mercado brasileiro, só Hyundai, Toyota e Renault venderam mais no primeiro semestre deste ano do que no mesmo período do ano passado. O desempenho na última década é ainda mais impressionante.

Num período em que as vendas no Brasil triplicaram, a Hyundai passou de 0,27% para 7% de participação. A distância para a quarta colocada, a Ford, caiu de 10 para 2 pontos em dez anos. Se for mantido o ritmo atual, os coreanos vão ultrapassar os americanos em dois anos. Mas é possível manter o ritmo atual? A década de ouro de Caoa será seguida por outra?

O simples fato de vender e produzir carros de uma marca que cola na traseira da Ford é, em si, uma vitória simbólica para Caoa. Ele começou a carreira vendendo para a montadora americana em 1979. Antes disso, porém, tentou ganhar dinheiro das mais diversas formas.

Caoa nasceu em João Pessoa, numa família de 17 irmãos. Na adolescência, vendia café aos clientes de um empório de secos e molhados do pai. Depois, comprou um Gordini Dolfini, carro de classe média da época, e virou sócio de uma frota de táxi. Em meados dos anos 60, vendeu o táxi, fez as malas, mudou-se para São Paulo e comprou um mercadinho no centro da cidade.

Dois anos depois, voltou para a Paraíba, dessa vez disposto a estudar medicina. Tornou-se um dos primeiros cirurgiões gástricos de Campina Grande e logo se manifestou o jeito de fazer negócios que o tornaria conhecido. Com a ajuda de um enfermeiro, Caoa monopolizou a realização de suturas no hospital — um serviço bem pago, mas desprezado pelos demais médicos. Começou a ganhar dinheiro a ponto de provocar uma revolta dos colegas, que se juntaram e desmontaram a parceria.

Enquanto suturava pacientes e irritava médicos, Caoa fazia negócios na cidade. Como não recebeu um veículo modelo Landau que comprara numa revenda falida, negociou com o dono para assumir a loja — que se tornaria a principal revenda da Ford no Nordeste, com 90 carros vendidos por mês.

Com dinheiro em caixa, Caoa comprava à vista com desconto e vendia do jeito que fosse para girar o estoque e começar de novo. Aceitava até pagamento em cabeças de boi, sacos de cimento e lotes de tijolos. Abandonou a medicina e decidiu se mudar para Recife. “Naquela época, eu era inimigo de todo mundo”, diz.

Em 1984, comprou duas concessionárias Ford em São Paulo e passou a incomodar aquilo que chamava de “cardeais” do setor na cidade — um dos inimigos na época era o empresário Eduardo Souza Ramos, que hoje representa a montadora japonesa Mitsubishi no Brasil. De novo, a agressividade comercial foi sua marca.

Para ganhar mercado, abria aos domingos, algo então incomum. Dava descontos, fazia escambo, mas não perdia o cliente. No fim dos anos 80, respondia, sozinho, por 30% das vendas da montadora no Brasil. Em meio à recessão de 1992, comprou de uma só vez 2 000 carros Ford que estavam encalhados no pátio. Vendeu tudo. Até hoje, com 11 lojas, é o maior revendedor da empresa no ­país.

Foi uma série de infortúnios que o levaram a tirar a sorte grande — associar-se à montadora certa (a Hyundai) no momento certo (ainda quando a marca era desconhecida). Em 1992, ele se tornou representante da francesa Renault no Brasil. Mas, três anos depois, a montadora começou a construir uma fábrica no Paraná e retomou os direitos de importação de seus modelos.

Caoa pediu uma indenização de 600 milhões de reais, mas, depois de quatro anos de briga, levou 5 milhões. E começou a procurar outra marca para se associar. Em 1999, fechou com a nanica Hyundai, que tinha 0,27% de participação de mercado no Brasil e era igualmente irrelevante no resto do mundo. Nos primeiros cinco anos, a parceria deu prejuízo. Mas logo em seguida tudo mudaria.

Na última década, a Hyundai se estabeleceu como uma das principais montadoras do mundo. Como havia acontecido com as fabricantes japonesas antes, as coreanas encontraram seu espaço — basicamente, oferecendo produtos parecidos, mas que saíam mais baratos do que os carros da concorrência. Conquistou, por exemplo, 5% do disputado mercado americano. Com carros cada vez melhores à sua disposição, Caoa pôde se dedicar à sua especialidade: vender.

Em nenhum grande mercado fora da Coreia a Hyundai tem tanta força quanto no Brasil. É impossível atribuir com exatidão os méritos dessa transformação, mas é inegável que ela se deve a uma combinação de bons produtos e bons preços com uma avassaladora estratégia de marketing.

Mesmo sendo muito menor do que as rivais tradicionais, a Hyundai-Caoa foi por quatro anos seguidos, entre 2009 e 2012, a montadora que mais investiu em publicidade. Em dezenas de ocasiões, foi repreendido pelo Conar, órgão que regula a publicidade no país, por divulgar nas campanhas resultados “parciais” de pesquisas com consumidores, que davam a impressão de que a Hyundai tinha os melhores carros do planeta.

Também anunciava que os veículos tinham inovações que, na verdade, não estavam disponíveis nos modelos vendidos no Brasil. A principal queixa contra a Caoa foi feita em 2010 pelo empresário José Luis Gandini, importador da também coreana Kia Motors, marca controlada pelo grupo Hyundai.

Gandini protestou contra frases usadas por Caoa para exaltar a Hyundai em seus anúncios, como “Hyundai. Já é a quarta maior fabricante de automóveis do mundo” ou “Até a Kia, sua divisão barata, ganhou notícia”. O problema é que a Hyundai só alcançou o quarto lugar no mercado global graças à soma de sua produção com a da Kia — as duas montadoras se fundiram em 1999. Gandini e Caoa não se falam. Procurado, Gandini não deu entrevista.

Disputas judiciais

A briga com Gandini é uma das inúmeras cultivadas por Caoa ao longo das últimas três décadas. Seu lema é: ganhe primeiro, pergunte depois. Claro, isso incomoda muita gente. Disputas como a que complicou a vida do empresário Kildare Cavalcanti, descrita no início desta reportagem, são coisas do dia a dia para Caoa.

Em 2011, no Rio Grande do Norte, o Grupo Nadiesel, liderado pelo empresário Paulo Melo, denunciou­ Caoa por “concorrência danosa”. Melo acusava Caoa de vender para as próprias concessionárias carros por preços abaixo do mercado e por não enviar carros e peças para as demais varejistas que, como a Nadiesel, também vendiam Hyundai. O caso ainda corre na Justiça em primeira instância.

Com fre­quência, as pendências vão parar nos tribunais. Só em São Paulo e na Paraí­ba existem dezenas de processos ativos em primeira e segunda instâncias em que a Caoa ou seu proprietário são réus. O estado da Paraíba, por exemplo, cobrava 34 milhões de reais de Caoa por não pagamento de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços.

Há um ano, a Procuradoria-Geral do Estado da Paraí­ba obteve três vitórias consecutivas nesse processo e conseguiu executar o débito. A Caoa fez um acordo e está pagando a dívida em 60 meses. Até março de 2014, somente a Receita Federal contabilizava 467 processos administrativos contra a Caoa. Quatro deles resultaram em investigações por suspeitas de omissão de receita e rendimentos em São Paulo e em Goiás, onde fica a fábrica do grupo.

Uma das denúncias mais recentes foi feita em abril pelo Ministério Público Federal (MPF). Para o MPF, o empresário tentou iludir o Fisco sonegando impostos de mercadorias adquiridas no exterior. De acordo com a acusação, Caoa foi flagrado importando 600 motores para limpadores de vidro fabricados na Coreia do Sul por meio de um serviço de entrega expressa.

As peças valiam 69 942 reais, enquanto o valor declarado na alfândega foi de 2 992,92 reais. Segundo o MPF, em 2011 e 2012 o empresário importou mais de 43 000 produtos semelhantes aos que foram apreendidos pela Receita no Aeroporto Internacional de Guarulhos.

“O presente delito não é um episódio isolado envolvendo a empresa Caoa Montadora de Veículos e seu sócio-administrador, Carlos Alberto de Oliveira Andrade”, diz o documento obtido por EXAME. O juiz ainda não acatou a denúncia do MPF. Caoa nega as acusações e diz que o fornecedor errou nas informações de um lote específico.

“Na verdade, se tratou de uma importação de emergência para substituir peças que tinham chegado com problema de qualidade”, afirma o diretor jurídico da Caoa, Marcelo Elias. “Todas as nossas importações chegam de navio, e o preço informado no lote é o normalmente cobrado pelo fornecedor.”

Em outro caso, em 2002, Caoa já havia sido condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região a cinco anos e cinco meses de reclusão, em regime semiaberto, por dois crimes de empréstimos na década de 90. Como havia sido absolvido em primeira instância, ele recorreu ao Supremo Tribunal Federal, e a punição acabou prescrevendo.

Ao longo dos anos, suas brigas foram ganhando cifrões. Em 2012, Caoa foi um dos protagonistas da crise que levaria à liquidação do banco BVA. Com cerca de 800 milhões de reais depositados e sendo o maior investidor do banco, Caoa tentou comprá-lo, mas as negociações naufragaram.

Segundo documentos do Banco Central obtidos com exclusividade por EXAME, o ex-presidente do BVA Ivo Lodo e outros cinco executivos dizem que Caoa, em busca de maiores ganhos, deu início à quebra do banco. Dizem os executivos que a operação “foi extremamente viável até que o grupo Caoa, seu maior investidor, passou sistematicamente a realizar saques e retiradas, gerando a situação de progressivo problema de liquidez, que culminou na intervenção e posterior liquidação”.

Ainda segundo os executivos, Caoa se comprometeu a injetar, em sociedade com o empresário Cleber Faria, do grupo de bebidas Petrópolis, 300 milhões de reais — se pudesse, em troca, sacar a mesma quantia. O dinheiro foi sacado, dizem eles, mas o aporte não veio. Procurado, Lodo não comentou o assunto.

O BVA, como se sabe, acabou indo à lona. Caoa diz que é vítima. “Ele era correntista e só estava querendo minimizar suas perdas. Se soubéssemos que o BVA corria tanto risco, teríamos tirado o dinheiro antes”, afirma Marcelo Elias. Sete anos antes, Caoa foi envolvido na crise de outro banco — o Santos.

A massa falida da instituição alega que Caoa tem uma dívida de cerca de 180 milhões de reais com o Banco Santos. Caoa diz que o empréstimo já foi quitado, mas, segundo o Ministério Público, o documento de quitação apresentado por ele tem assinatura falsa.

Em fevereiro, a Justiça de São Paulo endossou a avaliação e condenou Caoa a pagar uma multa de 1,5 milhão de reais e uma indenização de 15,4 milhões à massa falida. Caoa entrou com recurso alegando que a assinatura falsa foi produzida dentro do próprio Banco Santos.

Com faturamento de 12 bilhões de reais em 2013, a Caoa se tornou um negócio grande e complexo demais para ser administrado do mesmo jeito que era há dez anos. A Caoa não tem balanço auditado nem conselho de administração. Em março de 2013, essa estrutura simplória começou a mudar quando Caoa contratou o engenheiro Antonio Maciel Neto, ex-presidente da Ford e da fabricante de papel e celulose Suzano, para presidir o grupo.

Maciel contratou oito diretores de outras montadoras, de varejistas e de companhias de aviação. Além dos carros, cuida dos imóveis do grupo, que incluem dezenas de concessionárias, terrenos e edifícios, avaliados em 1 bilhão de reais.

Caoa se afastou do dia a dia do negócio. Trabalha em sua casa, uma mansão no bairro paulistano Jardim Europa, cercado por um acervo de obras de arte que inclui tapeçarias francesas do século 18 e telas de Di Cavalcanti e Portinari. Vai no máximo uma vez por semana à sede da Caoa.

O empresário parece estar se preparando para uma nova fase — uma etapa em que o crescimento espetacular da última década dificilmente vai se repetir. E os desafios serão muito diferentes daqueles que marcaram sua carreira de vendedor.

Até 2007, Caoa e Hyundai tinham apenas um contrato de importação. Nos últimos anos, Caoa investiu 1,8 bilhão de reais em uma fábrica própria, na cidade goiana de Anápolis, para montar alguns modelos da marca. Hoje, a fábrica produz 36 000 unidades por ano dos utilitários HR e HD78 e dos SUVs Tucson e iX35.

A relação entre as duas empresas se tornou particularmente complexa em 2012, quando a Hyundai inaugurou uma fábrica própria em Piracicaba, no interior de São Paulo, para produzir o modelo compacto HB20, desenvolvido especialmente para o Brasil e que se tornou um fenômeno de vendas.

Para comercializar o HB20, a Hyundai criou uma rede própria de 180 lojas, que vendem exclusivamente o modelo, das quais 30 pertencem a Caoa. É uma situação inusitada. Em nenhum outro país há um distribuidor local e uma subsidiária operada pela montadora atuando simultaneamente.

Os três contratos de Caoa com os coreanos — de importação, fabricação e distribuição — estão em plena validade. O de importação vence em 2018, mas tem uma cláusula de renovação automática por mais dez anos. Oficialmente, os dois lados dizem que na próxima década tudo correrá na santa paz.

Mas os desafios que se avizinham não são triviais. Dos quatro modelos produzidos por Caoa em Anápolis, dois estão em fim de ciclo: o utilitário HR, primeiro veículo da Hyundai produzido no Brasil, e o Tucson, que, embora ainda seja o produto mais vendido por Caoa, foi lançado há dez anos.

A concorrência nesse segmento (com preços de 60 000 a 70 000 reais) tende a crescer brutalmente, já que várias montadoras estão lançando seus “jipinhos”. Por anos, ­Caoa aproveitou uma entressafra nesse segmento para ganhar espaço. No caso do iX35, utilitário esportivo mais caro (na faixa de 100 000 reais), o problema será a produção local de marcas de luxo, como as alemãs Mercedes, BMW e Audi.

Em 2004, quando Caoa parou de ter prejuízo com a Hyundai, o mercado brasileiro vivia numa eterna crise e as montadoras estavam fechando suas fábricas. Hoje, apesar do soluço recente, o país tem o quinto maior mercado do mundo. O número de montadoras instaladas por aqui cresceu de 15 para 50 no período. A parceria entre Caoa e Hyundai, que deu tão certo até hoje, será testada.

Se tiver um modelo matador para produzir no Brasil, a empresa coreana transferirá a tecnologia ao parceiro ou simplesmente criará uma linha nova em sua fábrica de Piracicaba? ­Caoa diz que o futuro de sua fábrica é produzir um carro 100% nacional — algo que, a rigor, ele vem afirmando há sete anos. Enquanto esse improvável dia não chega, Caoa continuará fazendo o que deu tão certo na última década — convencer os brasileiros a colocar mais um carro coreano na garagem.

Vicente Vilardaga, de Exame

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