A página do apiário Padre Assis na internet explica: “apicultura é a ciência, ou arte, da criação de abelhas com ferrão”. Para um leigo no assunto, a definição pode soar exagerada. Não para seu Adi Pozzatto, o artista, ou cientista, responsável pela propriedade localizada em Santiago, no Oeste do Estado, e considerada uma referência na produção de mel de excelência. Para fazer jus à referência aos saberes do conhecimento e da estética presentes em seu site, o local inova e trabalha também com geleia real, pólen, própolis e até um vinagre de mel.
Os cálculos do IBGE indicam a presença de abelhas em 44 mil propriedades no Rio Grande do Sul. Nesse universo, alguns apicultores possuem apenas uma colmeia, outras propriedades contam com até 3 mil. Ou seja, parte da produção é utilizada apenas para consumo próprio ou venda informal. Por isso, segundo informações da Federação Apícola do Rio Grande do Sul (Fargs), o Estado tem, na verdade, cerca de 30 mil apicultores. Das regiões de colonização italiana e alemã, a atividade tem migrado para áreas mais extensas, como o Pampa e a Campanha gaúcha, pois a urbanização e a criação de animais dificultam o manejo nos locais em que ela se iniciou.
Não há exatidão quanto ao número de colmeias, mas as estimativas variam entre 500 e 550 mil, com uma produtividade média de 15 a 18 quilos. A produção, com isso, gira entre 8 mil e 11 mil toneladas por ano, conforme as condições climáticas. Para além da comercialização do mercado interno, um excedente de cerca de 4 mil toneladas é exportado, e o mel gaúcho tem reconhecida qualidade devido à diversidade de sua flora. Dada nossas condições ambientais, a resistência das espécies e o número de colmeias, as entidades ligadas ao setor concordam em um ponto: mesmo liderando o ranking do Brasil, temos condições de produzir muito mais.
“Não estamos sabendo explorar esse potencial. Hoje, não trabalhamos com 10% da capacidade apícola do Rio Grande do Sul”, afirma o presidente da Fargs, Aldo Machado dos Santos. Os entraves dizem respeito à falta de mecanização do transporte e colheita, ausência de políticas públicas que facilitem acesso ao crédito e de projetos de pesquisa na área. Para o assistente técnico da Emater, Paulo Francisco Conrad, também implica o fato de que, para grande parte das propriedades com abelha, a apicultura consiste em uma atividade secundária, fazendo com que o manejo e o investimento sejam baixos.
Superando tais fatores, os gaúchos poderiam triplicar a produção de mel sem nem ao menos aumentar o número de colmeias. Ou seja, é viável que a capacidade da produtividade média possa saltar de 15 quilos para, pelo menos, 45 quilos. Isso sem falar na perspectiva de oferecer uma variedade maior de produtos – como a própolis, a geleia real e o pólen, que pode valer entre R$ 80,00 e R$ 300,00 no mercado internacional – e agregar valor aos já disponíveis – consolidando o mel orgânico -, com objetivo de rentabilizar a atividade.
Para tanto, não é preciso ir longe, uma vez que o grupo de criadores do apiário Padre Assis, consegue, por meio da profissionalização da atividade, uma média que pode superar os 100 quilos de mel por colmeia, ou seja, até 600 toneladas distribuídas em três safras anuais. Sendo a apicultura ciência ou arte, seu Pozzatto a herdou do avô e do pai, e fala da atividade com sapiência: “Por que razão me deram essa bela atividade não sei bem. Mas trabalhar com esse animal, que ajuda a natureza através da polinização e fornece produtos que fazem bem ao ser humano, é, para mim, uma realização muito grande”, diz.
Produção migratória é vista como futuro da atividade
Clima chuvoso teve forte impacto sobre a produção na primavera, com um volume de apenas 1 mil toneladas
A apicultura, como qualquer atividade agrícola, é extremamente dependente do clima. As condições ideais são inversas daquelas exigidas pela produção de grãos. Quanto menos dias de chuva, melhor será a produção de mel. Em anos de precipitações elevadas, as abelhas ficam sem poder trabalhar, dentro da colmeia, consumindo o estoque de alimentos. Mais ativas durante o dia, elas preferem umidade durante a noite, o que garante a presença abundante de matéria-prima nas flores, mas não impede o expediente diurno.
A última primavera não correspondeu a tais expectativas. O El Niño trouxe muita água e, em setembro, houve períodos frios e dias nublados. Essa combinação freia a lida diária e, consequentemente, o acúmulo de alimento no período ideal. A safra da estação acabou ficando bem abaixo do esperado. Com uma média de 6 mil toneladas obtidas nessa época, o Rio Grande do Sul mal chegou a 1 mil toneladas em 2016, segundo o assistente técnico em apicultura da Emater, Paulo Francisco Conrad. Entretanto, não sobra tempo para descanso, uma vez que a safra de outono começa agora, em fevereiro.
O ciclo produtivo gaúcho é, portanto, dividido em duas fases, uma na primavera, outra no outono, variando em outros estados, conforme o bioma da região. A primeira rende ligeiramente mais do que a segunda, representando cerca de 60% do total. Além disso, enquanto na estação das flores as fontes de matéria-prima são diversificadas, no outono as abelhas se valem, principalmente na Metade Sul, da florada do eucalipto. Alguns produtores, inclusive, apostam na produção migratória, transportando as caixas para obter bons resultados nas duas oportunidades.
A utilização do expediente migratório tem crescido no Rio Grande do Sul e, de acordo com o presidente da Federação Apícola do Rio Grande do Sul, Aldo Machado dos Santos, conforme sua organização, pode render até três safras ao produtor: na primavera, no verão e no outono. “Esse sistema é o futuro da apicultura”, projeta. Em vez de, ao fim de um ciclo produtivo, esperar por uma nova florada, que deve acontecer somente depois de um ano na mesma região, o apicultor busca outras variedades botânicas. “O custo é apenas no transporte, mantém a abelha forte e triplica a produtividade”, explica Machado.
Agrotóxicos causam mortalidade e danos ecológicos
Abelhas sofrem com o aumento do uso de defensivos em lavouras
A expansão de um modelo agrícola baseado na monocultura e na utilização de agrotóxicos causa uma série de dificuldades para a apicultura. As grandes lavouras de soja, arroz irrigado, girassol e canola em áreas desmatadas diminuíram a diversidade botânica original do Estado, conforme explica o professor da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Aroni Sattler. Restam, então, poucos locais de interesse para as abelhas, e caem a qualidade e a quantidade do pólen disponível.
“Quanto mais colorido o pólen for, mais nutritivo ele é. Quanto mais espécies botânicas participando do processo, mais bem alimentada a abelha fica, desenvolvendo seu sistema imunológico e elevando sua produtividade e longevidade”, ensina Sattler. E, não bastasse ter alimento em menores quantidade e qualidade, os animais ainda precisam conviver com a aplicação de agrotóxicos em larga escala. Entre 2002 e 2012, o uso de produtos químicos na agricultura brasileira mais que dobrou: de 2,7 para 6,9 quilogramas por hectare, aumento de 155%.
Vulnerável à efetividade dos inseticidas, a abelha morre, muitas vezes, ainda na lavoura. Contudo, doses subletais podem ser ainda mais perversas com o ciclo de vida desses animais. A pulverização área, proibida em boa parte da Europa e, ao contrário, muito presente na agricultura brasileira, não atinge apenas a área plantada, uma vez que o vento pode arrastar o químico por centenas de metros e, em alguns casos, até por quilômetros. Nesses casos, a vegetação do entorno e as curvas de nível, onde geralmente há circulação de água, são contaminadas.
Em seu habitat, o inseto tem contato com pequenas quantidades do agrotóxico, que fica acumulado em seu organismo e é transportando para dentro da colmeia, interferindo na produção de pólen. “Com isso, não há ação das bactérias e fungos que transformam essa proteína e a biodisponibilizam para a abelha”, afirma o professor Sattler. Muitas vezes, o apicultor verifica a colmeia com abundância de alimento e pensa que está tudo bem, mas trata-se de um pólen contaminado. “Temos, então, um efeito residual que causa grande mortandade, pois afeta órgãos tanto na fase de larva, quanto de adulto”, completa.
Nos EUA, estima-se que diversos fatores, entre eles os citados acima, levam a perda de um terço dos enxames anualmente. Entretanto, os efeitos negativos das altas taxas de mortalidade impactam para além da produção de mel. Isso porque as abelhas são reconhecidas como as principais polinizadoras da natureza. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, 80% das plantas com flores das matas e florestas e 70% das culturas agrícolas dependem de agentes polinizadores. Por isso, a necessidade de sua proteção.
Entreposto deve ampliar as exportações gaúchas
A qualidade do mel brasileiro ultrapassa fronteiras desde 2003, quando foi criada uma entidade responsável apenas por esse elo da cadeia: a Associação Brasileira dos Exportadores de Mel (Abemel). Desde então, os números vêm crescendo e, em 2014, segundo os dados da Abemel, foi registrado o recorde de exportações brasileiras: 25,3 milhões de quilos, com um saldo financeiro de US$ 98,5 milhões. Em 2015, segundo dados da Abemel, o comércio exterior se manteve estável, com 22,2 milhões de quilos, rendendo US$ 81,7 milhões. No último ano, os Estados Unidos foram nossos principais compradores, com 15,8 milhões de quilos.
Em seguida, mas bem abaixo dos norte-americanos, ficaram a Alemanha, destino de pouco mais de 2 milhões de quilos, e o Canadá, com quase 1,5 milhão de quilos. Além desses, o mel nacional seguiu para outros 23 países, nos cinco continentes. O Rio Grande do Sul, mesmo sendo o maior produtor do Brasil, foi apenas o sétimo colocado, ao exportar 596 mil quilos, atrás de Santa Catarina, São Paulo, Paraná, Piauí, Minas Gerais e Ceará. A explicação para esse cenário, de acordo com a Fargs, é a falta de entrepostos de mel em solo gaúcho.
Com isso, parte do produto é exportado via Santa Catarina, São Paulo e Paraná. “Há um descaminho do nosso mel, pois ele sai com origem desses estados e quem ganha divisas são eles”, lamenta o presidente da Fargs, Aldo Machada Dos Santos. Por isso, a Cooperativa Apícola do Pampa (Coapampa) trabalha na finalização de um novo entreposto, localizado na cidade de São Gabriel, com capacidade para 2 milhões de quilos, a partir de janeiro de 2017.
Fonte: Jornal do Comércio