Shenzhen — A rotina dos trabalhadores de lojas e escritórios de Shenzhen, polo de tecnologia no sul da China, é a mesma há décadas. Antes de subir para o escritório, eles param numa das dezenas de barraquinhas de rua e compram uma embalagem de plástico com um punhado de noodles, o macarrão chinês, e legumes, carnes e ovos. Tudo com muito shoyu. É o café da manhã e o almoço do dia a dia. A novidade ocorre na hora de pagar.
Equilibrada embaixo de uma cesta de ovos, há uma folhinha com um QR code do estabelecimento (veja no canto inferior esquerdo da foto acima). Basta apontar a câmera do celular para o código e o pagamento está feito. Quase ninguém usa dinheiro, e o comerciante faz cara feia para quem o obriga a parar de servir para contar notas e moedas.
A cena se repete em outros lugares. O vendedor de melancias, poucos metros à frente, também prefere receber o pagamento digital. As bicicletas de aluguel espalhadas pela cidade só são liberadas pelo celular, por 50 centavos a hora. Adolescentes não recebem mais mesada dos pais, mas depósitos em seus aplicativos. Até garçons têm o próprio QR code pendurado no avental para receber gorjetas. A China, país que inventou o papel-moeda há 15 séculos, caminha a passos firmes para ser o primeiro a aposentá-lo.
As compras sem dinheiro já representam 60% do total no país. Em mercados maduros, como o do Reino Unido, o índice também é alto (55%), mas o que chama a atenção na China é o fato de o país estar pulando do dinheiro físico para os meios digitais sem passar pelo cartão de crédito ou de débito. Em 2016, por exemplo, o volume de pagamentos feitos com o smartphone chegou a 5,5 trilhões de dólares.
A mudança é impulsionada por um aumento de 31% no PIB per capita, para 6 500 dólares, e de 30% na taxa de uso da internet, para 50 em cada 100 chineses, nos últimos sete anos. Além disso, os smartphones são relativamente baratos. Um aparelho de ponta de fabricantes locais, como Oppo, Huawei e Xiaomi, custa pouco mais de 500 reais.
“Os jovens chineses não tiveram computador e pularam para o celular. Também não tiveram cartão de crédito e foram direto para os pagamentos digitais. Quando eles passaram a ter acesso à tecnologia, mergulharam de cabeça”, diz In Hsieh, presidente da China-Brasil Internet Promotion Agency e ex-diretor da Xiaomi no Brasil.
A pouca popularidade do cartão de crédito e os entraves na regulação ajudam a explicar o tamanho do fosso nos pagamentos digitais entre a China e outros grandes mercados. Segundo a empresa de pesquisas Forrester, os pagamentos móveis nos Estados Unidos chegaram a 112 bilhões de dólares em 2016, ou 2% do tamanho do mercado chinês, o que também revela certa resistência por parte dos americanos a usar o smartphone no lugar do cartão para fazer compras.
Duas companhias chinesas, sozinhas, responderam por 3 trilhões de dólares em transações em 2016: a varejista online Alibaba, dona do serviço de pagamentos Alipay, e a empresa de tecnologia Tencent, dona do aplicativo WeChat (conhecido como Weixin na China). Cinco anos atrás, o volume de transações feitas pelas duas empresas não chegava a 100 bilhões de dólares. A velocidade de crescimento se explica por uma corrida frenética entre elas.
Alibaba e Tencent foram criadas com meses de diferença, entre o fim de 1998 e o início de 1999. Seus dois fundadores são as maiores estrelas do mercado de tecnologia chinês. De um lado está Jack Ma, ex-professor de inglês que levou o Alibaba à Bolsa de Valores de Nova York e hoje tem uma fortuna de 28,3 bilhões de dólares; de outro, Ma Huateng, fundador da Tencent, dono de uma fortuna de 24,9 bilhões de dólares e à frente da quinta companhia de tecnologia mais valiosa do planeta, atrás apenas de Apple, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Amazon. O valor de mercado da Tencent alcança impressionantes 331 bilhões de dólares.
O Alibaba chegou antes ao mercado de pagamentos. A empresa começou com o Taobao, uma versão chinesa do site de comércio eletrônico eBay. Em 2004, Ma lançou o Alipay, um clone do serviço de pagamentos PayPal, para dar suporte à sua loja online. Em 2009, o Alipay ganhou um aplicativo para celular, o que permitiu fazer pagamentos também no varejo tradicional com um simples toque na tela. Já a Tencent começou com o QQ, uma plataforma de mensagens que chegou a 1 bilhão de usuários.
Em 2011, lançou o WeChat, um aplicativo que combina as funções do WhatsApp com as do Facebook e ainda permite comprar passagens aéreas, localizar um restaurante, encontrar um namorado, agendar uma consulta médica, checar a qualidade do ar, entre outras funções. Todos os meses, 889 milhões de pessoas utilizam o app.
O serviço que mais cresce é o WeChat Pay, lançado em 2013 como uma carteira virtual dentro do aplicativo. A entrada do WeChat no mercado de pagamentos foi chamada pelo concorrente Jack Ma de um “ataque de Pearl Harbor” ao Alipay.
O sistema Alibaba ainda é líder na China com 54% de participação nas compras digitais, tanto em lojas online quanto físicas. Cada um dos 450 milhões de usuários do Alipay gasta, em média, 2 921 dólares por ano usando o serviço.
Durante o Dia do Solteiro, em novembro, principal data do varejo chinês, 1 bilhão de dólares foram gastos pelos usuários do Alipay em um único dia. Já o WeChat Pay tem 37% do mercado chinês, mas vem ganhando terreno. O valor gasto por usuário em 2016 ficou em 1 526 dólares, um aumento de 168% em um ano.
A Tencent, dona do WeChat, cresce porque tem uma dominância invejável da audiência móvel na China — 55% do tempo que os chineses passam no celular são gastos em algum dos aplicativos da empresa (QQ, WeChat e outros). Como está sempre aberto na palma da mão de seus usuários, o WeChat Pay acaba sendo a ferramenta mais rápida para fazer um pagamento no mundo real — em lojas, restaurantes e barracas de rua. Um estudo feito pela consultoria McKinsey no ano passado revela que 31% de todos os usuários do WeChat fizeram compras no aplicativo, o dobro de 2015.
Novas frentes
A entrada da Tencent no mercado de pagamentos, área dominada pelo Alipay, acirrou a competição. O Alibaba pretende investir 150 milhões de dólares nos próximos três anos para incentivar o varejo tradicional a aceitar pagamentos via Alipay. Nas grandes cidades, é comum ver comerciantes que aceitam pagamento pelas duas plataformas, mas, no interior, há milhares de endereços sem o serviço.
Como a competição é ferrenha, as duas companhias investem também em novas frentes. O WeChat tem um serviço para presentear amigos com dinheiro — um costume milenar no país. A tradição manda que o presente seja entregue dentro de um envelope vermelho, e o WeChat criou uma versão digital.
No Ano-Novo chinês de 2016, foram 46 bilhões de transações. Já o Alibaba está investindo em serviços financeiros via Alipay. Os clientes podem fazer pequenos investimentos e poupanças dentro do aplicativo. No ano passado, 152 milhões de pessoas investiram 117 bilhões de dólares por meio do serviço. A empresa ainda emprestou 107 bilhões de dólares para 4 milhões de micro e pequenas empresas.
Outra frente de expansão tem se mostrado muito mais complicada: levar os aplicativos para fora da China. Os usuários podem usar o WeChat Pay e o Alipay em Hong Kong e na Tailândia. A Tencent também fechou uma parceria na África do Sul e outra nos Estados Unidos para atender basicamente os turistas chineses.
As duas companhias fizeram ainda investimentos em empresas de pagamento indianas. Não vai ser fácil. “Para ter sucesso, o Alipay e o WeChat Pay terão de se adequar à regulação local e superar a desconfiança dos usuários. São os mesmos desafios que as empresas estrangeiras enfrentam quando entram na China”, diz Zennon Kapron, diretor da consultoria especializada em tecnologia Kapronasia, com base em Xangai.
“Nossa prioridade é a China, onde ainda há muita coisa a ser feita”, diz um diretor da Tencent enquanto mostra, em um enorme mapa projetado no hall da sede da empresa, onde estão os 889 milhões de usuários do WeChat — 689 milhões deles chineses. As luzinhas se aglomeram na costa do país e ficam mais escassas no interior. Para o WeChat e o Alibaba, trazer as outras centenas de milhões de consumidores chineses para o século 21 é uma oportunidade bilionária sem igual.
Por Lucas Amorim de Exame