Exemplos de empresas como Gerdau, Bunge e Klabin, que se destacam pela capacidade de resistir à passagem do tempo
Ana Luiza Daltro, da EXAME
São Paulo – O ano era 717. Conta-se que o mestre budista Taicho Daishi resolveu se exercitar no monte Hakusan, na região de Ishikawa, localizada no sudoeste do Japão. À noite, em um sonho, uma divindade lhe disse haver a alguns quilômetros da montanha uma aldeia em que existia uma fonte de água com poderes altamente restauradores. Daishi foi até a aldeia, chamada Awazu, e ordenou a Garyo Houshi, seu discípulo, que erguesse ali uma espécie de spa.
A história desse lugar, fundado em 718 e batizado de Houshi, tem muito de lenda. Mas seu sucesso é real: em operação até hoje, 1.293 anos depois, e sob o comando do 45º descendente de Houshi, o misto de hotel e spa comporta 450 hóspedes, que costumam ser recebidos com a tradicional cerimônia do chá e um quimono de algodão.
O fato é que o hotel se perenizou mantendo vivos valores milenares ao mesmo tempo que se modernizava no plano administrativo. No contexto japonês, isso significou a travessia de ordens econômicas, políticas e sociais tão distintas quanto o shogunato, a fase do império expansionista e a democracia moderna que chegou a ser a segunda economia do mundo.
O exemplo do hotel Houshi, tido como a empresa mais antiga do mundo, é uma exceção mesmo na cultura japonesa. Mas sua admirável longevidade leva a pensar: o que faz com que alguns negócios sobrevivam ao tempo e outros — a maioria deles, na verdade — pereçam?
Danny Miller, professor na École des Hautes Études Commerciales de Montreal e na University of Alberta, ambas no Canadá, fez um estudo sobre o que leva alguns negócios de família a durar e outros a desaparecer. A conclusão, válida também para companhias não familiares, é que as empresas que tiveram sucesso marcaram mais pontos em quesitos que ele classificou como continuidade, comunidade, conexão e comando. A continuidade diz respeito a ter um foco ligado a um propósito econômico ou social.
O termo comunidade representa o fato de a empresa formar um grupo coeso em torno de valores claros e defendidos de forma intolerante — mas com apego apenas a princípios, nunca rejeitando ideias inovadoras. Já a conexão é uma referência a alianças sólidas com públicos externos. Por fim, o comando, nas empresas bem-sucedidas, se dá por meio de líderes que exercem a gestão com conhecimento, motivação e coragem para tomar as melhores decisões em favor do negócio.
A negligência em relação a esses fatores é, para Miller, causa de perda de competitividade e, no limite, do fracasso total da organização. “Empresas como Enron, WorldCom e Tyco enfatizaram o papel individual do executivo em detrimento da comunidade corporativa, as simples transações em lugar de conexões perenes com os stakeholders, o curto prazo em prejuízo do foco na continuidade e a liderança oportunista no lugar de um comando corajoso”, afirma Miller. “Todas quebraram, o que fornece uma lição clara.”
O Brasil, com sua curta história como nação e como economia organizada, produziu algumas empresas que vêm mostrando capacidade de se manter na ativa muito além do tempo de vida de seus criadores. Nomes como Gerdau, Hering e Klabin já disputavam o incipiente mercado local há mais de um século.
Gerdau: empresa tem 110 anos de existência
Além de empresas como essas três, que nasceram como negócios familiares e continuam tendo à frente descendentes dos fundadores, o ambiente empresarial brasileiro registra entre suas companhias mais antigas algumas que ficaram vivas mudando de mãos e ainda multinacionais que se fixaram aqui nos primórdios do capitalismo no país.
Um levantamento feito sobre a base das 1 000 maiores empresas do Brasil por vendas, de MELHORES E MAIORES, identificou que 30 delas são centenárias, incluindo aí dois hospitais — a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o paulista Beneficência Portuguesa — e uma universidade, o Mackenzie, de São Paulo.
A mais antiga organização da lista é uma estatal: a Casa da Moeda, instalada em 1695 pelos governantes portugueses em Salvador, então a capital da colônia, para cunhar moeda localmente. Já naquela época tratava-se de suprir um descompasso entre oferta e demanda: a expansão da mineração de ouro e pedras preciosas e o crescimento do comércio colonial requeriam mais dinheiro em circulação.
A maioria das empresas brasileiras longevas, no entanto, é bem mais jovem: tem no máximo 141 anos. Foi durante o Segundo Império que surgiram negócios como a mineira Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira (1872), as têxteis catarinenses Hering (1880) e Karsten (1882) e o jornal O Estado de S. Paulo (1870).
Era um período em que a chegada de imigrantes europeus e a expansão da cultura do café levavam o povoamento ao interior e impulsionavam a diversificação da economia. Num surto seguinte, depois de proclamada a República, a transformação de vilas em cidades multiplicou as oportunidades, especialmente para o surgimento de indústrias.
É quando nascem a Gerdau (1901), cuja origem é uma modesta fábrica de pregos adquirida em Porto Alegre pelo imigrante alemão Johann Gerdau, e a Souza Cruz (1903), a primeira a ter uma máquina automática de enrolar cigarros, importada no Rio de Janeiro por iniciativa do imigrante português Albino Souza Cruz.
O desenvolvimento de centros urbanos já atraía naquela época fornecedores estrangeiros de serviços. Foi o caso dos investidores canadenses que criaram concessionárias de energia elétrica e de operação de bondes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na lista de centenárias que constam de MELHORES E MAIORES, há duas descendentes dessas companhias que tomaram rumos diversos.
Uma delas é a Light (1899), ainda distribuidora de energia no Rio de Janeiro, mas hoje uma empresa de capital aberto e de controle brasileiro, com participação da estatal mineira Cemig e do BNDES. A outra, que continua a ser controlada pelos canadenses, é a construtora e incorporadora que até 2009 se chamava Brascan, quando mudou o nome para a marca mundial Brookfield.
O que há em comum entre essas empresas que resistem ao tempo no Brasil? O mundo dos negócios é essencialmente darwiniano, ou seja, só deixa sobreviver — e, em especial, crescer — quem evolui e se molda ao meio. Isso significa que todas, em primeiro lugar, mostraram uma extraordinária capacidade de se ajustar a turbulências e mudanças intensas num país emergente — da economia, da política, do mercado de trabalho, do acesso ao capital e da regulação —, além das que seriam esperadas da tecnologia, da concorrência e das exigências dos clientes.
“Nossa empresa atravessou as duas guerras mundiais, as ditaduras políticas de Getúlio Vargas e do governo militar de 1964, o período inflacionário e outras dificuldades”, diz Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do conselho de administração do grupo Gerdau. “Sempre tivemos a capacidade e a agilidade necessárias para nos adaptar a cada uma dessas adversidades, e em cima de cada uma delas buscar oportunidades.”
Uma estudiosa da perenidade corporativa no Brasil, Denise Fleck, professora de pós-graduação em administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chegou à conclusão de que a longevidade é fruto de decisões conscientes dos gestores em relação a um conjunto de fatores.
Eles incluem a iniciativa de empreender, de preferência à frente da concorrência, a inovação combinada com estratégia de mercado, a diversidade geográfica de atuação, a provisão de gente qualificada e a gestão adequada de conflitos internos. No caso da Gerdau, o fator diversidade geográfica significa hoje ter operações em 14 países, o que faz do grupo um dos mais globalizados entre os de controle brasileiro.
A necessidade de diversificar e agarrar oportunidades antes que concorrentes o fizessem está na raiz do estabelecimento de algumas multinacionais no país há mais de 100 anos. Entre essas empresas que saíram pelo mundo e aportaram no Brasil de economia ainda embrionária — e ganharam com seu crescimento nas décadas seguintes — está a holandesa Bunge.
Já quase centenária na matriz (que foi fundada em 1818), a empresa especializada no comércio de produtos agrícolas chegou em 1905 por meio da aquisição de um moinho de trigo no porto de Santos, em São Paulo. Com o tempo, enveredou por uma diversificação de negócios que foi até o ponto de se tornar excessiva.
A Bunge no Brasil chegou a ter, no início dos anos 90, um total de 136 empresas. A lista incluía desde a Santista Têxtil (criada para fazer sacos de farinha numa época em que não havia fornecedores com capacidade de atender à sua demanda) até uma empresa de informática, a Monydata, dedicada a processar a enxurrada de dados gerados por tantas operações.
Nos anos 90, com a abertura do mercado brasileiro, o ambiente se transformou e a concorrência cresceu por todos os lados — aí veio um grande teste quanto à capacidade de adaptação. A Bunge, então, vendeu tudo o que não estava ligado ao agronegócio — e restringiu-se a produtos alimentícios, bioenergia e fertilizantes.
Mesmo quem manteve um foco mais fechado não escapa de, cedo ou tarde, ter de se reinventar. Para o jornal O Estado de S. Paulo, no mercado há 136 anos, essa hora chegou nos últimos anos, com a internet e, mais recentemente, suas redes sociais, sendo cada vez mais usadas como fontes de informação.
Nenhum veículo de comunicação, no mundo todo, conseguiu encontrar até agora uma solução definitiva para manter operações economicamente viáveis nesses meios. “Para lidar com a nova realidade, temos um fórum que monitora as melhores práticas observadas pelo mundo, traz conhecimentos de especialistas e promove o debate no nosso time”, diz Silvio Genesini, ex-executivo da área de tecnologia que hoje preside o grupo que publica o jornal paulista. A perspectiva é achar o caminho da renovação sem alterar a essência — pode ser a chave da vida longa, como fez o milenar hotel Houshi.